quarta-feira, 30 de março de 2016

Leitura Literária #1: "João Vêncio: Os seus amores", de Luandino Vieira

Saudações leitor,

Estamos inaugurando hoje a tag "Leitura Literária", em que será feito um breve resumo e uma quase análise (sem spoiler) de um livro de literatura, desde obras mais conhecidas até obras menos divulgadas. Focaremos, como a própria proposta do blog, em obras de países de Língua Portuguesa.

       O romance inaugural é João Vêncio: Os seus amores do escritor Luandino Vieira.

     Luandino Vieira¹ escreveu o romance João Vêncio: Os seus amores em 1968 quando estava preso em Cabo Verde, acusado de estar associado ao Movimento popular de libertação de Angola (MPLA). No entanto, o livro só foi publicado onze anos depois, em 1979. Nessa obra, nota-se o empenho de Laundino Vieira em dar destaque para a linguagem, a qual se adequa à linguística da fala dos musseques² de Luanda, com uso das gírias, registro oral da língua, fala por imagens e a presença constante do quimbundo. Como o próprio autor afirma: “usar a linguagem do povo e elevar a um nível literário, estético”, isto é, a representação do mundo através dessa escolha de linguagem. Dessa forma, a linguagem aproxima o romance de Luandino Vieira da literatura oral.
        O romance apresenta uma ontologia diferenciada, ou seja, o leitor ocidentalizado se depara com outro espaço civilizacional e uma forma de se expressar que não é típico do seu universo. Entre quebras narrativas e sintáticas, o autor proporciona uma leitura diferente que apresenta um personagem singular, o qual engana e intriga o leitor através de seu jeito particular de narrar, permeado de experiências, provérbios, ditados, sabedoria popular e poesia.
           O canal Nova Angola publicou um vídeo muito interessante e pertinente sobre esse livro do Luandino Vieira. No vídeo, o próprio autor fala sobre a obra e as circunstâncias em que ela foi concebida. Além disso, há, também, entrevista com Fernando J. B. Martinho, escritor do prefácio do romance. Segue o vídeo:





    ¹ Pseudônimo de José Vieira Mateus da Graça.
²Bairro, geralmente de construções precárias, nos arredores de uma cidade, onde habitam os moradores menos favorecidos”. in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa http://www.priberam.pt/dlpo/musseque.


Referências
VIEIRA, José Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa: Edições 70, 1979. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Mordaças a uma cultura: a necessidade da desconstrução da perspectiva eurocêntrica de cultura dominante e essencialista

O universal é pensado, no pensamento ocidental, a partir de uma lógica europeia. Ao estudar, por exemplo, literatura universal nos deparamos com autores como Homero, Shakespeare, Kafka, Dostoiévski, Tolstói, etc. Esses autores, e muitos outros que recorremos ao pensar literatura universal, são europeus. Acízelo de Souza (2007) afirma que a literatura surgiu com a civilização ocidental. “Aliás, devemos dizer que a literatura é um produto cultural que surge com a própria civilização ocidental, pelo fato de que textos literários figuram entre os indícios mais remotos da existência histórica dessa civilização”. (SOUZA, 2007, p. 10)Por que só o ocidental? Ele estaria sendo eurocêntrico por não considerar as formas de expressão oral dos não-ocidentais? É complexo porque o autor em questão usa a literatura oral da Grécia no século VI A.C., Ilíada e Odisséia, para exemplificar e mostrar as primeiras formas de literatura.
Sabemos que Acízelo de Souza, como a maior parte dos estudiosos de literatura, restringiu-se apenas aos estudos de literatura sob uma perspectiva ocidental. É entendível visto que suas bases bibliográficas são constituídas de obras que possuem a mesma perspectiva ocidentalizante. Em vista disso, percebe-se que há uma necessidade iminente de evadir-se dos estudos literários que possuem olhar microscópico, em que prioriza apenas a visão ocidental. Em detrimento a isso, seria interessante pensar de forma macroscópica e conceber os estudos literários de forma mais ampla, levando em consideração as literaturas, principalmente, de países silenciados pelo domínio europeu.
Há inúmeras culturas silenciadas pelo colonialismo europeu, principalmente nos continentes africano e americano. Entretanto, veremos apenas o exemplo de um escritor de Cabo Verde – país africano de colonização portuguesa – chamado Ovídio Martins (1928) e como ele critica em seu poema o silenciamento.
O único impossível
Mordaças
A um poeta?
Loucura!

E por que não
Fechar na mão uma estrela
O Universo num dedal?(...)

Mordaças
A um poeta?
Absurdo!

E por que não
Parar o vento
Travar todo o movimento? (...)

Mordaças
A um poeta?
Não me façam rir!...
Experimentem primeiro
Deixar de respirar
Ou rimar... Mordaças
Com Liberdade
100 poemas, 1974

No contexto da brutal escravização, a mordaça presente no poema acima representa o silenciamento e a violência colonial. O poema, dessa forma, representaria uma forma de Liberdade (com L maiúsculo), em que o poeta tenta se livrar dos silenciamentos, principalmente o cultural, neste caso, impostos a ele.
Ainda sobre a universalidade eurocêntrica, para que o sujeito seja civilizado precisa ser grafocêntrico, ter religião embasada no cristianismo e vestimentas. Aquele indivíduo ou sociedade que não se enquadram nesses parâmetros não são considerados civilizados, mas sim selvagens, rústicos e primitivos.
Para Antonio Candido (1987), o conceito de civilização está atrelado ao de huminização e a literatura age como força humanizadora. Em “Literatura e subdesenvolvimento”, Candido usa expressões como homem inculto e atraso cultural para classificar os homens que possuem uma cultura mais oral do que escrita. Ele chega a afirmar que “a incultura em geral produzia e produz uma debilidade muito mais penetrante, que interfere em toda a cultura e na própria qualidade das obras.” (CANDIDO, 1987; P. 178).
 Se, para Candido, a civilização é humanização, os indivíduos da sociedade que não se adequam aos parâmetros de cilivizados – grafocêntrico, religião embasada no cristianismo, vestimentas – não são considerados humanos?
Entendendo universal como algo que engloba todos e isso inclui todos os países do mundo, focar apenas em países europeus, para pensar a literatura, por exemplo, é excluir todo um globo para valorizar uma minoria dominante. Por que pensar que as literaturas latina, africana, asiática etc não se encaixam na literatura universal?
Esse pensamento eurocêntrico nos estudos literários provém das colonizações, consideradas conquistas entre os séculos XVI e XX, feitas pelos países europeus. Grande parte dos países africanos colonizados por Portugal tiveram sua independência recentemente, nas décadas de 1960 e 1970. Sendo assim, as figuras estereotipadas e hierarquizantes de colonizador/dominante e colonizado/dominado associados à raça perduram, indireta ou diretamente, até os dias de hoje. O racismo, assim, é binômio indissociável de colonização.
É válido entender a relação das identidades dos envolvidos nessa dinâmica de colonização, que desemboca na ideia de hierarquia rácica. Nesse sentido, Lynn Mario Menezes de Souza (2004) esclarece, embasado no Hibridismo cultural de Homi Bhabha (1949), como se dá a construção da identidade dos sujeitos coloniais. A construção da identidade, para Bhabha, possui uma dinâmica relacional dos sujeitos coloniais. O ser humano se define em relação ao outro e, por isso, a identidade se constitui do olhar do outro. Além disso, percebe-se que toda a identidade é construída, isto é, não há identidade pronta/concluída e, também, a sua construção é instável.
É pertinente destacar que a identidade abrange vários domínios, podendo ser, portanto, identidade política, de gênero, biológica, racial, cultural, etc. A identidade abordada aqui abrange, de certa forma, um pouco de cada domínio citado. Entretanto, o interesse maior são as identidades racial e cultural, que, consequentemente, influenciam na identidade política.
Há, segundo Homi Bhabha em consonância com Fanon, três aspectos essenciais no processo de construção da identidade. O primeiro consiste na ideia de existir para o outro. Assim, a construção da identidade aqui é sempre pensada em relação ao desejo com o lugar do outro. O segundo aspecto incide no desejo de caráter dúbio da vingança, a qual desencadeia um processo de cisão. Ao mesmo tempo em que o colonizado quer estar no lugar do colonizador, ele quer, também, continuar no lugar de colonizado. Já o terceiro aspecto trata-se da “produção de uma imagem de identidade acompanhada simultaneamente pela tentativa agonística de transformar o sujeito, fazendo com que ele assuma essa imagem”. (SOUZA. P. 121)
Bhabha apresenta, pelo menos, dois modos de representação recorrentes na literatura colonial e pós-colonial. O primeiro modo é a análise de imagens, na qual a imagem representativa do sujeito é contemplada como reflexo ou manifestação de um conteúdo referencial conhecido e estável de antemão. No caso da representação do colonizado, por exemplo, a análise de imagens feita pelo (ex)colonizador reafirma sua superioridade, produzindo imagens racistas e discriminatórias do colonizado vistas, entretanto, como verdadeiras. A ideia de colonização, portanto, se dá na hierarquização e coloca sempre um outro (colonizado) inferior.
Carlos Moore, no prefácio do discurso de Aimé Césaire sobre Negritude (2010), esclarece a definição de racismo segundo Frantz Fanon (1925 – 1961). Para Fanon, o racismo despontaria do imaginário social não favorável ao negro africano e sua cultura, tornando-se uma prática real cultural e psicológica. Isso provinha da submissão constante dos negros ditos como inferiores, “para serem discriminados e explorados” (p. 27) Em vista disso, Fanon considera que seja preciso fazer uma revolta no regime político-cultural. A partir dessa proposição surgiu o conceito revolucionário de luta social da Negritude no século XX. O movimento foi efetivado na década de 1930, pela luta e posicionamento social de Aimé Césaire (1913 – 2008), da Martinica, Léopold Sédar Senghor (1906 – 2001), do Senegal, e Léon-Gontran Damas (1912 – 1978), da Guiana. (CESAIRE, A., 2010, p. 9)
Segundo Cesaire, afirmar a negritude é afirmar a humanidade do negro e enfrentar o racismo. Ela é uma forma de noção contrária ao racismo. É, ainda, uma decisão interna de se colocar de forma ética e moral frente à “racialização” das trocas sociais. Por conseguinte, a negritude se constitui como uma maneira de pensar, de ser, de atuar e de se posicionar diante da realidade do mundo. Realidade essa que valoriza e hierarquiza raças.
       Qual a importância da Literatura nessa afirmação de identidade? Primeiro, precisamos entender que Literatura é a representação da sociedade/temporalidade. A literatura africana vai representar as ideologias do colonizado em revolução. Será, ainda, usada como arma. A arma, nesse caso, seriam as línguas/linguagens, a afirmação identitária, anticolonial, anti-imperialista, antieurocêntrica, antirracista.
A teoria de Bhabha, esclarece que a soberania e a convicção visíveis no discurso hegemônico devem ser subvertidas, repensadas e desconsolidadas para que um novo discurso híbrido e libertário possa ser gerado, entendendo que toda cultura é dinâmica e que não há cultura acabada/finalizada. O hibridismo, portanto, atravessa os conceitos teóricos de Bhabha – representação, identidade, tradução cultural – por se tratar de um aspecto de todas as linguagens inseridas em todas as culturas.
Em consonância com Bhabha e Cesaire, para que haja a desconstrução do pensamento cultural e social eurocêntrico abordado no início deste ensaio, é preciso que a cultura seja vista, em contraposição à perspectiva ocidental de cultura dominante e essencialista, como híbrida, ativa e em permanente mudança. Para tal desconstrução é preciso, também, evidenciar e criar novos estudos literários que abordam as literaturas africanas silenciadas ao longo de toda a história da literatura. Poderíamos, assim, pegar emprestada a expressão usada por Ovídio no poema “O único impossível”, “mordaças a um poeta?”, e aplicar aos estudos literários em geral. Nos questionaríamos então: Mordaças a uma nação? A uma cultura? Loucura!


                Referências
CANDIDO, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento”. In A educação pela noite. São Paulo: Ática,1987.
_______________. O direito à literatura e outros ensaios. Angelus Novos, 2004.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso  sobre a negritude. Org. Carlos  Moore. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
SOUZA, Lynn Mario Menezes de. “Hibridismo e tradução cultural em Bhabha” in ABDALA JR, Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004. 2.
SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de. Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 2007.

FERREIRA, Manuel. 50 poetas africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Lisboa: Plátano, 1989.


Autora: 
Juliana Campos Alvernaz (1993)

sábado, 29 de novembro de 2014

Na teia memorialística de Caderno de memórias coloniais




Caderno de Memórias Coloniais acompanha de perto o crescimento da personagem Isabela em Moçambique até sua mudança para Portugal. A partir de eventos decisivos da história desses países, como a guerra da independência moçambicana em 1974 e o retorno em massa dos colonos para Portugal. Esses eventos principais, além de outros em menor escala, que diluídos ao longo da história planejam a cronologia da narrativa conferindo a ela caráter fragmentário. A essa estrutura em fragmentos, que, diga-se de passagem, se sustentam como textos independentes, podemos atribuir duas razões principais: o resgate da memória, que por natureza dá um tom de inexatidão aos relatos e a arquitetura de post-capítulos, em razão de serem originalmente posts do blog da própria autora.
O olhar sobre os retornados, que sempre fora condoído, em Caderno de Memórias Coloniais a autora passa um olhar mais cru, menos apiedado, revelando as faces da verdadeira violência colonial: “Eu tinha de usar um anel de ouro com um rubi. Era feio e apertava-me o dedo. Os negros não usavam nada que os apertasse, a não ser o trabalho do branco. Servir o branco apertava já o suficiente”(pg 45). O trabalho apertava o corpo, por ser um trabalho escravo, e alma, pela privação de dignidade e liberdade. A autora, assim, vai contra o movimento de apagamento da violência do colonialismo português.
Da perspectiva de uma criança que começa a perceber o quão preconceituosa e problemática é a sociedade a que pertence, a história é contada em tom de inocência. Mas uma inocência perspicaz e irônica que capta as nuances de violência implícita e explícita personificadas na figura do pai.
A visão dos brancos sobre as pretas é acidamente ironizada deste ponto de vista “infantil”, vemos que
Os brancos iam às pretas. As pretas eram todas iguais e eles não distinguiam a Madalena Xinguile da Emília Cachamba, a não ser pela cor da capulana ou pelo feitio da teta, mas os brancos metiam-se lá para os fundos do caniço, com caminho certo ou não, para ir à cona das pretas. Eram uns aventureiros. Uns fura-vidas. (pg 13).
O senso comum e discriminatório do colonizador sobre os “pretos”, homens e mulheres, é exposto de modo a evidenciá-lo com tanta naturalidade que o torna irônico. Tal discriminação foi tão presente no colonialismo que os negros eram vistos como outra espécie inferior e eram comparados com animais. O crime deles, segundo a Isabela, era justamente serem pretos.
“A distância entre brancos e pretos era equivalente à que existe entre diferentes espécies. Eles eram pretos, animais. Nós éramos brancos, éramos pessoas, seres racionais.” (p. 35) “(...)olhar um branco, de frente, era provocação directa; baixar o olhos, admissão de culpa.” (p. 46)
Na passagem “As pretas não eram sérias, as pretas tinham a cona larga, as pretas gemiam alto, porque as cadelas gostavam daquilo. Não valiam nada.” (p. 13) Isabela Figueiredo traz uma perspectiva menos suavizada do colonizador não se deixando levar pelo apagamento da violência portuguesa, que é tradicional nos relatos coloniais portugueses. Destacando-se principalmente pela maneira como narra sua história, justamente por conferir a ela a sobriedade de seu “eu” criança, permeando seu “eu” crítico e consciente da situação de Moçambique.
Apesar de bastante realista, pois é inspirado na vida da autora, Caderno de Memórias Coloniais é considerada uma obra autoficcional. A autoficção é um gênero que mescla as categorias de autobiografia e ficção de maneira paradoxal ao juntar, na mesma forma de escrita, essas duas palavras que deveriam se excluir. Sendo assim, surgem acréscimos ficcionais na história resgatada da infância da Isabela.
A narradora nos passa um olhar nostálgico de sua estadia em Moçambique, pois se identificava com aquela terra. “Eu gostava de conversar com os mainatos. (...) A minha mãe tinha medo que os mainatos me fizessem mal ou me roubassem. Ou desconfiava de mim, adivinhando a minha alma de preta.” (p.74)
A figura paterna é fundamental para a compreensão da obra, pois através dela a  protagonista percebia o processo colonial, que gera um trauma em relação ao pai e a Portugal. Traumas surgidos mais pelos silêncios do que pelas palavras e constituídos mais de fragmentos do que de narrativa. Além disso, há um sentimento dúbio em relação ao pai, visto que ela nutre ódio figura colonizadora dele e amor à figura paterna do mesmo. Podemos concluir que ele é uma metonímia do colonialismo, o que se torna evidente nesta passagem da entrevista do final do livro: “Quando meu pai regressou a Portugal trouxe consigo o colonialismo e nunca foi capaz de sair dele. O meu pai era o colonialismo.” (p. 21)
A família da Isabela era constituída de colonos brancos que, em consonância com Silvio Renato Jorge, escapam ou são repelidos de seu país devido ao movimento de independência das ex-colônias africanas. Procuram, assim, na metrópole o lugar que não lhe é dado em sua terra natal.
O sentimento identitário da autora ficcionalizada se estabelece de forma dúbia e intervalar, pois ao mesmo tempo em que tramita pelos dois espaços – Moçambique e Portugal – ela se distancia dos dois e acaba se tornando estrangeira em ambos os lugares. O retornado se torna duplamente estrangeiro, tanto em Portugal quanto na colônia. Ela se situa, portanto, no espaço de fronteira entre essas duas nações e, como uma estrangeira, a retornada é recebida com ambiguidade, pois é vista como um outro, objeto de repulsa e de atração.
Podia descalçar-me ás escondidas no mato, e ir clandestinamente, sem sapatos, a ver se conseguia que os meus pés ficassem como os pés dos negros, de dedos abertos e sola dura, rachada. E gingava como uma preta, para experimentar o que era ser preta. E as mamanas passavam por mim e riam-se, e os negros também. E diziam-se coisas que eu não percebia, riam-se, a branca, a branca, essa branca do electricista. E eu ria-me. Tinham reparado em mim. Parecia-me com eles. Tinham-se rido. Ia descalça. E não podia.(p. 101)
Essa passagem retrata a tentativa da personagem em se assemelhar aos moçambicanos, mas eles riam dela, isto é, tratavam-na como uma estrangeira. Ela é uma estrangeira do lugar onde nasceu e se torna estrangeira em Portugal também, já que as referências da metrópole que a personagem possuía eram diferentes das referências portuguesas dos que lá nasceram e vivem: “Em Portugal, habituei-me cedo a ser alvo de troça ou de ridículo, por ser retornada ou por me vestir de vermelho ou lilás.” (p. 119)
Não havia, inicialmente, um sentimento de pertença a Portugal e a terra a que pertencia, Moçambique, não poderia pertencer. A posição da menina como filha de colonizadores era ambígua, pois ao mesmo tempo em que notamos seu envolvimento com a ex-colônia, vemos que ela possui uma criação calcada nos modelos portugueses, apesar de não ser exatamente como em Portugal.  
Em suma, a situação intervalar da identidade do retornado oferece, principalmente para aquele que já nasce na colônia como a Isabela, uma dificuldade ao pensar no sentimento de pertença e origem em qualquer tempo e lugar. Além disso, experimenta constantemente uma vivência fronteiriça, na qual o sujeito se distancia e se aproxima ao mesmo tempo dos dois territórios, percorrendo por várias adaptações e escolhas. 





Referências



FIGUEIREDO, Isabela.  Caderno de memórias coloniais. Coimbra: Angelus Novus, 2009

JORGE, Silvio Renato. Sobre mulheres e estrangeiros – alguns romances de Olga Gonçalves. EDUFF: Niterói, 2009.



MORAES, Anita Martins de. Resenha de Caderno de memórias coloniais, Isabela Figueiredo in http://www.buala.org/pt/a-ler/resenha-a-caderno-de-memorias-coloniais-de-isabela-figueiredo


Autores:
Juliana Campos Alvernaz (1993)
Graduanda em Letras - Português/ Literaturas pela UFF. Foi bolsista PIBID e Iniciação Cientifíca com foco na literatura do escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho e no gênero romance policial.  
            Rudá da Costa Perini (1991)
Graduando em Letras - Português /Literaturas pela UFF. Foi bolsista PIBID e vem se enveredando para o lado da Linguística. Contista não descoberto.