O
universal é pensado, no pensamento ocidental, a partir de uma lógica europeia.
Ao estudar, por exemplo, literatura universal nos deparamos com autores como
Homero, Shakespeare, Kafka, Dostoiévski, Tolstói, etc. Esses autores, e muitos
outros que recorremos ao pensar literatura universal, são europeus. Acízelo
de Souza (2007) afirma que a literatura surgiu com a civilização ocidental. “Aliás,
devemos dizer que a literatura é um produto cultural que surge com a própria
civilização ocidental, pelo fato de que textos literários figuram entre os
indícios mais remotos da existência histórica dessa civilização”. (SOUZA, 2007,
p. 10)Por que só o ocidental? Ele estaria sendo eurocêntrico por não considerar
as formas de expressão oral dos não-ocidentais? É complexo porque o autor em
questão usa a literatura oral da Grécia no século VI A.C., Ilíada e Odisséia, para exemplificar e mostrar as primeiras formas
de literatura.
Sabemos
que Acízelo de Souza, como a maior parte dos estudiosos de literatura, restringiu-se
apenas aos estudos de literatura sob uma perspectiva ocidental. É entendível
visto que suas bases bibliográficas são constituídas de obras que possuem a
mesma perspectiva ocidentalizante. Em
vista disso, percebe-se que há uma necessidade iminente de evadir-se dos
estudos literários que possuem olhar microscópico, em que prioriza apenas a
visão ocidental. Em detrimento a isso, seria interessante pensar de forma
macroscópica e conceber os estudos literários de forma mais ampla, levando em
consideração as literaturas, principalmente, de países silenciados pelo domínio
europeu.
Há
inúmeras culturas silenciadas pelo colonialismo europeu, principalmente nos
continentes africano e americano. Entretanto, veremos apenas o exemplo de um
escritor de Cabo Verde – país africano de colonização portuguesa – chamado
Ovídio Martins (1928) e como ele critica em seu poema o silenciamento.
O
único impossível
Mordaças
A um poeta?
Loucura!
E por
que não
Fechar
na mão uma estrela
O
Universo num dedal?(...)
Mordaças
A um poeta?
Absurdo!
E por
que não
Parar o
vento
Travar
todo o movimento? (...)
Mordaças
A um poeta?
Não me
façam rir!...
Experimentem
primeiro
Deixar
de respirar
Ou
rimar... Mordaças
Com
Liberdade
100
poemas, 1974
No contexto da brutal escravização,
a mordaça presente no poema acima representa o silenciamento e a violência
colonial. O poema, dessa forma, representaria uma forma de Liberdade (com L
maiúsculo), em que o poeta tenta se livrar dos silenciamentos, principalmente o
cultural, neste caso, impostos a ele.
Ainda
sobre a universalidade eurocêntrica, para que o sujeito seja civilizado precisa
ser grafocêntrico, ter religião embasada no cristianismo e vestimentas. Aquele
indivíduo ou sociedade que não se enquadram nesses parâmetros não são
considerados civilizados, mas sim selvagens, rústicos e primitivos.
Para
Antonio Candido (1987), o conceito de civilização está atrelado ao de
huminização e a literatura age como força humanizadora. Em “Literatura e subdesenvolvimento”,
Candido usa expressões como homem inculto e atraso cultural para classificar os
homens que possuem uma cultura mais oral do que escrita. Ele chega a afirmar
que “a incultura em geral produzia e produz uma debilidade muito mais
penetrante, que interfere em toda a cultura e na própria qualidade das obras.”
(CANDIDO, 1987; P. 178).
Se, para Candido, a civilização é humanização,
os indivíduos da sociedade que não se adequam aos parâmetros de cilivizados –
grafocêntrico, religião embasada no cristianismo, vestimentas – não são
considerados humanos?
Entendendo
universal como algo que engloba todos e isso inclui todos os países do mundo,
focar apenas em países europeus, para pensar a literatura, por exemplo, é
excluir todo um globo para valorizar uma minoria dominante. Por que pensar que
as literaturas latina, africana, asiática etc não se encaixam na literatura
universal?
Esse
pensamento eurocêntrico nos estudos literários provém das colonizações,
consideradas conquistas entre os séculos XVI e XX, feitas pelos países europeus.
Grande parte dos países africanos colonizados por Portugal tiveram sua
independência recentemente, nas décadas de 1960 e 1970. Sendo assim, as figuras
estereotipadas e hierarquizantes de colonizador/dominante e colonizado/dominado
associados à raça perduram, indireta ou diretamente, até os dias de hoje. O
racismo, assim, é binômio indissociável de colonização.
É
válido entender a relação das identidades dos envolvidos nessa dinâmica de
colonização, que desemboca na ideia de hierarquia rácica. Nesse sentido, Lynn
Mario Menezes de Souza (2004) esclarece, embasado no Hibridismo cultural de Homi Bhabha (1949), como se dá a construção
da identidade dos sujeitos coloniais. A
construção da identidade, para Bhabha, possui uma dinâmica relacional dos sujeitos
coloniais. O ser humano se define em relação ao outro e, por isso, a identidade
se constitui do olhar do outro. Além disso, percebe-se que toda a identidade é
construída, isto é, não há identidade pronta/concluída e, também, a sua construção
é instável.
É
pertinente destacar que a identidade abrange vários domínios, podendo ser,
portanto, identidade política, de gênero, biológica, racial, cultural, etc. A
identidade abordada aqui abrange, de certa forma, um pouco de cada domínio
citado. Entretanto, o interesse maior são as identidades racial e cultural, que,
consequentemente, influenciam na identidade política.
Há,
segundo Homi Bhabha em consonância com Fanon, três aspectos essenciais no
processo de construção da identidade. O primeiro consiste na ideia de existir
para o outro. Assim, a construção da identidade aqui é sempre pensada em
relação ao desejo com o lugar do outro. O segundo aspecto incide no desejo de
caráter dúbio da vingança, a qual desencadeia um processo de cisão. Ao mesmo
tempo em que o colonizado quer estar no lugar do colonizador, ele quer, também,
continuar no lugar de colonizado. Já o terceiro aspecto trata-se da “produção
de uma imagem de identidade acompanhada simultaneamente pela tentativa
agonística de transformar o sujeito, fazendo com que ele assuma essa imagem”.
(SOUZA. P. 121)
Bhabha
apresenta, pelo menos, dois modos de representação recorrentes na literatura
colonial e pós-colonial. O primeiro modo é a análise de imagens, na qual a
imagem representativa do sujeito é contemplada como reflexo ou manifestação de
um conteúdo referencial conhecido e estável de antemão. No caso da
representação do colonizado, por exemplo, a análise de imagens feita pelo
(ex)colonizador reafirma sua superioridade, produzindo imagens racistas e discriminatórias
do colonizado vistas, entretanto, como verdadeiras. A ideia de colonização,
portanto, se dá na hierarquização e coloca sempre um outro (colonizado)
inferior.
Carlos
Moore, no prefácio do discurso de Aimé Césaire sobre Negritude (2010), esclarece
a definição de racismo segundo Frantz Fanon (1925 – 1961). Para Fanon, o
racismo despontaria do imaginário social não favorável ao negro africano e sua
cultura, tornando-se uma prática real cultural e psicológica. Isso provinha da
submissão constante dos negros ditos como inferiores, “para serem discriminados
e explorados” (p. 27) Em
vista disso, Fanon considera que seja preciso fazer uma revolta no regime
político-cultural. A partir dessa proposição surgiu o conceito revolucionário
de luta social da Negritude no século
XX. O movimento foi efetivado na década de 1930, pela luta e posicionamento
social de Aimé Césaire (1913 – 2008), da Martinica, Léopold Sédar Senghor (1906
– 2001), do Senegal, e Léon-Gontran Damas (1912 – 1978), da Guiana. (CESAIRE,
A., 2010, p. 9)
Segundo
Cesaire, afirmar a negritude é afirmar a humanidade do negro e enfrentar o
racismo. Ela é uma forma de noção contrária ao racismo. É, ainda, uma decisão
interna de se colocar de forma ética e moral frente à “racialização” das trocas
sociais. Por conseguinte, a negritude se constitui como uma maneira de pensar,
de ser, de atuar e de se posicionar diante da realidade do mundo. Realidade
essa que valoriza e hierarquiza raças.
Qual a importância da Literatura
nessa afirmação de identidade? Primeiro, precisamos entender que Literatura é a
representação da sociedade/temporalidade. A literatura africana vai representar
as ideologias do colonizado em revolução. Será, ainda, usada como arma. A arma,
nesse caso, seriam as línguas/linguagens, a afirmação identitária,
anticolonial, anti-imperialista, antieurocêntrica, antirracista.
A
teoria de Bhabha, esclarece que a soberania e a convicção visíveis no discurso
hegemônico devem ser subvertidas, repensadas e desconsolidadas para que um novo
discurso híbrido e libertário possa ser gerado, entendendo que toda cultura é
dinâmica e que não há cultura acabada/finalizada. O hibridismo, portanto,
atravessa os conceitos teóricos de Bhabha – representação, identidade, tradução
cultural – por se tratar de um aspecto de todas as linguagens inseridas em
todas as culturas.
Em
consonância com Bhabha e Cesaire, para que haja a desconstrução do pensamento
cultural e social eurocêntrico abordado no início deste ensaio, é preciso que a
cultura seja vista, em contraposição à perspectiva ocidental de cultura
dominante e essencialista, como híbrida, ativa e em permanente mudança. Para
tal desconstrução é preciso, também, evidenciar e criar novos estudos
literários que abordam as literaturas africanas silenciadas ao longo de toda a
história da literatura. Poderíamos, assim, pegar emprestada a expressão usada
por Ovídio no poema “O único impossível”, “mordaças a um poeta?”, e aplicar aos
estudos literários em geral. Nos questionaríamos então: Mordaças a uma nação? A
uma cultura? Loucura!
Referências
CANDIDO,
Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento”. In A educação pela noite. São
Paulo: Ática,1987.
_______________.
O direito à literatura e outros ensaios.
Angelus Novos, 2004.
CÉSAIRE,
Aimé. Discurso sobre a negritude. Org. Carlos Moore. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
SOUZA,
Lynn Mario Menezes de. “Hibridismo e tradução cultural em Bhabha” in ABDALA JR,
Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas.
São Paulo: Boitempo, 2004. 2.
SOUZA,
Roberto Acízelo Quelha de. Teoria da
Literatura. São Paulo: Ática, 2007.
FERREIRA,
Manuel. 50 poetas africanos: Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Lisboa: Plátano,
1989.
Autora:
Juliana Campos Alvernaz (1993)